Um coral de 'goooooools', o canto da sereia do futebol

Rio de Janeiro – Ao fazer sua grande estreia no rádio há 50 anos, José Carlos Araújo, que aperfeiçoou suas habilidades de narração esportiva com jogos de futebol de botão no quintal do vizinho, imaginou que ele teria de controlar sua alteração vocal para evitar perder o tom na metade dos longos gritos efusivos de "goooooool" que são a marca e fazem parte da rotina de narração dos locutores brasileiros.



Um coral de
Rio de Janeiro – Ao fazer sua grande estreia no rádio há 50 anos, José Carlos Araújo, que aperfeiçoou suas habilidades de narração esportiva com jogos de futebol de botão no quintal do vizinho, imaginou que ele teria de controlar sua alteração vocal para evitar perder o tom na metade dos longos gritos efusivos de 'goooooool' que são a marca e fazem parte da rotina de narração dos locutores brasileiros.
Um colega, veterano das transmissões de rádio, sugeriu que ele começasse a fumar. Mas Araújo, na época com 17 anos, teve outra ideia: contratou uma mulher que ensinava alemão com música na rádio pública nacional para lhe ensinar a cantar.
'Em se tratando de narrar um gol no futebol', disse Araújo, da Rádio Transamérica, um dos avôs da transmissão esportiva via rádio do país, 'existe uma grande dose de talento artístico envolvido'.
Entre os locutores esportivos no Brasil, o grito do 'goooooool' é o ponto de exclamação que pontua o ápice da narrativa, com a voz do locutor se modulando harmoniosamente e continuamente sempre que um time faz um gol. Se representada em forma de desenho, seria semelhante a um arco. Se fosse uma pessoa, seria a pessoa mais importante da sala.
Os torcedores gritam gol; os locutores juram que eles cantam. Galvão Bueno, um dos mais famosos narradores atuantes no Brasil, comparou o gol a 'uma nota dó alta de um a tenor', uma das mais difíceis de se atingir.
'É a sua maior realização', disse Bueno, que está trabalhando em sua 10ª Copa do Mundo narrando os jogos, predominantemente para a Rede Globo, a maior rede de televisão do Brasil. 'Ou o seu momento de derrota'.
É também um símbolo da história das transmissões esportivas no Brasil – e a sua característica mais duradoura e mais cativante.
Em 1946, 14 anos após a primeira transmissão ao vivo de uma partida de futebol em uma estação de rádio brasileira, Rebello Júnior, locutor da velha Rádio Difusora de São Paulo, estendeu o seu grito de 'gol' até quase ficar sem ar, legitimando o grito de celebração dado pelos torcedores nas arquibancadas e o ampliando para o mundo. Tudo num esforço para diferenciar: se todos estavam falando, por que não gritar?
Alex Escobar, calling his first World Cup this year for Globo TV, in Rio de Janeiro, June 4, 2014. The ability to belt out a long and loud call of "Goooooool" is now practically a requirement for broadcasters. "On days I’m narrating, I don’t drink coffee," Escobar said. "And the day before, I don’t drink alcohol." (© Marizilda Cruppe/The New York Times)
Edson Mauro, a sports radio broadcaster for Radio Globo, in Rio de Janeiro, June 3, 2014. Mauro says "bingo" before he cries out "gol" during matches and prods his broadcasting school students to call the same game over and over again in order to refine their own distinctive calls. (© Marizilda Cruppe/The New York Times)
Desde então, o 'goooooool' prolongado foi adotado na Espanha, na Alemanha (onde o 'gol' é substituído por 'tor', ou melhor, 'Tooooooor!') e por toda a América Latina, assim como os narradores de língua espanhola nos Estados Unidos.
Em 2008, como um experimento, Luis Roberto, locutor da Globo, gritava 'gol' apenas para o Botafogo, quando o time jogou nas quartas de final da Taça Libertadores contra o Club Estudiantes de La Plata da Argentina.
'Foi um desastre', contou Roberto, que narra partidas de futebol na televisão e no rádio desde 1977. 'Até mesmo os torcedores do Botafogo gritavam comigo, me acusando de desrespeito porque eu só reconhecia os gols marcados por uma equipe'.
A transmissão de futebol evoluiu com o tempo; os repórteres de campo passam informações rápidas sobre aspectos básicos do jogo para os narradores na cabine, como quem fez o gol e quem vai entrar para substituir o jogador que se machucou.
Diferenças regionais no ritmo e no estilo também se estabeleceram. Em São Paulo, os narradores têm mais semelhança com os locutores de corridas de cavalo, empregando um padrão conhecido como metralhadora. No Rio, o ritmo é indubitavelmente menos frenético. Mesmo assim, o grito de gol persiste, embora os locutores brasileiros o tenham enfeitado na esperança de que o grito deles se destaque.
O grito de Araújo é precedido por uma pausa, que, ele admitiu, é na verdade uma oportunidade para ele encher o pulmão. Edson Mauro (antigamente Edson Pereira de Melo), locutor renomado da Rádio Globo, diz 'bingo' antes de gritar gol, uma palavra que escolheu após passar uma noite ouvindo-a em um salão de bingo em Madri, em seu dia de folga depois de fazer a cobertura da Copa do Mundo na Espanha em 1982.
Na Escola de Rádio, uma escola de radiodifusão carioca, Mauro – que usava metade de uma casca de coco para ampliar as suas primeiras narrações das partidas de futebol de areia dos amigos em Alagoas, seu estado natal – incentiva seus alunos a narrarem o mesmo jogo repetidamente e os incentiva a se gravarem. O motivo, segundo ele, é que os alunos podem acompanhar o seu aprimoramento ou 'entender de uma vez por todas que o trabalho não é para eles e desistir'.
Galvao Bueno, center, one of the best-known sportscasters in Brazil, before a World Cup warm-up match in Sao Paulo, June 5, 2014. The ability to belt out a long and distinctive call of "Goooooool" is now practically a requirement for broadcasters in Latin America. “It’s your crowning achievement… or your moment of defeat,” Bueno says. (© Lalo de Almeida/The New York Times)
Gabriel Andrezo, a rookie announcer for the website FutRio, in Rio de Janeiro, June 3, 2014. Andrezo was once overcome in a fit of coughing while crying out "Goooooool," a call that originated in Brazil and has become a signature of the global game. (© Marizilda Cruppe/The New York Times)
Antes uma exceção, desde então a habilidade se tornou um requisito. Entre os narradores de esporte, o veredito é unânime: não existe futuro no rádio esportivo para os locutores que não sabem dar um grito de gol longo, alto e impressionante. Assim, eles treinam diariamente, praticamente do mesmo jeito que os cantores clássicos fazem antes de uma grande apresentação.
Mauro é um dos que cantarolam, bufam e fazem zumbidos, vibrando os lábios para relaxá-los. Bueno come maçãs e hidrata a garganta horas antes de narrar um jogo. Araújo, um septuagenário chamado de Garotinho, não toma uísque para evitar 'mudar o equilíbrio químico das minhas cordas vocais', disse.
Roberto consulta uma fonoaudióloga para lhe ajudar a tirar a voz do diafragma de forma que os seus gritos de gol não falhem. O seu colega, Alex Escobar, que está narrando a sua primeira Copa do Mundo, acha que as consultas de fonoaudiologia são 'meio bobas' e recorre, em vez disso, a truques simples que aprendeu quando era crooner de uma banda que tocava em bailes nos anos 90.
'Nos dias em que vou narrar, não tomo café', Escobar disse. 'E no dia anterior, não tomo álcool'.
Todos eles concordam com a importância de dormir, embora isso às vezes seja difícil de fazer.
Bueno vem acompanhando a seleção brasileira desde Goiânia, a sede do seu primeiro jogo amistoso, até a sede dos jogos durante o torneio, de carro ou de avião. Gabriel Andrezo, locutor novato do website FutRio, cujo foco é narrar os jogos realizados pelos times cariocas, às vezes, tem de pegar o trem voltando do estádio nos arredores da cidade, chegar em casa bem depois da meia noite e levantar de manhã cedo para escrever e publicar uma matéria, antes do horário do almoço, sobre o jogo que narrou.
Falhas acontecem, e as reações fisiológicas atrapalham. Uma vez o locutor foi tomado por um ataque de tosse. Araújo não conseguiu se livrar dos soluços. Roberto, após encerrar uma agenda de trabalho exaustiva na Copa do Mundo de 1998 na França, sentiu a voz vacilar ao gritar gol quando o Vasco da Gama marcou contra o River Plate da Argentina na semifinal da Taça Libertadores.
'Eu parecia o Tarzan', contou.

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