EU ME ORGULHO DE FAZER PARTE DESSE HISTÓRIA: Radiodifusão popular na Amazônia: Um pouco da nossa história nas ondas da Rural
“Atenção, Juca Mendonça, no
garimpo do Patrocínio. Aviso que estou sem dinheiro; mande logo, se não,
vou dar meu jeito. Assina, Kátia”.
Educar, alfabetizar, instigar à cidadania, evangelizar. E entreter,
como excelente incentivadora do esporte interiorano – o esporte no Oeste
do Pará seria hoje muito mais empobrecido se não fossem as ondas da
Rural de Santarém e do belo trabalho de suas equipes, as de ontem e as
de hoje. E a música, os músicos do interior da Amazônia, quantos deles
correram o Brasil depois de revelados e/ou estimulados pela Rural? Dia 5
de julho esse processo completa meio século.
Inúmeras comunidades ribeirinhas e das terras firmes são beneficiadas e animadas pela Rádio Rural |
Por Manuel Dutra
Postagem compartilhada com o Jornal do Comércio, de Itaituba
Nos 50 anos da Rádio Rural de Santarém, de Itaituba, de Óbidos, de Monte
Alegre, de Alenquer, de todo o Vale do Tapajós e de todo o Baixo
Amazonas, com certeza muitas histórias podem ser contadas.
Um percurso histórico que precisa fazer parte da agenda acadêmica das
universidades do hoje chamado Oeste do Pará, no sentido de, por meio da
análise metódica, científica, revelar-se o mais profundo significado do
que foi a Rádio Rural e a radiodifusão, como um todo, não apenas aqui no
coração da Amazônia, mas em toda essa imensa região que, por muitas
décadas, comunicou-se por meio das ondas abertas.
Um emissora com a participação ativa da comunidade de ouvintes |
Foram essas ondas que animaram a realização de negócios, aproximou
pessoas e grupos pelo comércio e pela exploração do ouro do Tapajós,
pelos dramas pessoais e familiares, pelas alegrias coletivas e
individuais, pelas festas religiosas. Mas, acima de tudo, por toda essa
teia de meio século no ar, uma rádio que deu uma contribuição incisiva
para a construção de uma identidade regional, no aspecto da economia, da
cultura, da religião, seja revelando nomes para as artes ou
contribuindo para a formação de um espírito regional favorável à criação
do Estado do Baixo Amazonas ou do Tapajós.
Educar, alfabetizar, instigar à cidadania, evangelizar. E entreter, como
excelente incentivadora do esporte interiorano – o esporte no Oeste do
Pará seria hoje muito mais empobrecido se não fossem as ondas da Rural
de Santarém e do belo trabalho de suas equipes, as de ontem e as de
hoje. E a música, os músicos do interior da Amazônia, quantos deles
correram o Brasil depois de revelados e/ou estimulados pela Rural?
Neste meio século os ideais permanecem, agora levados ao éter – como se
dizia nos tempos de Osmar Simões – por outras tecnologias e meios
técnicos mais rápidos e de fluxos incessantes. Dessa forma, também ao se
preparar para as ondas em frequência modulada, a Rádio Rural assume o
seu tempo medianeiro de igual para igual com as suas concorrentes,
conectada que está à web planetária.
Aproveito, por isso mesmo, nestes tempos de instantaneidade ensejada
pela internet, pelas fibras óticas, por tudo que os aparelhinhos
pessoais oferecem em possibilidade de comunicação distante e rápida,
para recordar um momento histórico do rádio no interior da Amazônia,
quando a radiodifusão, utilizando as tecnologias da época, prestou um
enorme serviço, pelo qual, a passada e a presente geração devemos
agradecer.
A seguir, ofereço um trecho de uma reportagem que publiquei no dia 12 de
julho de 1981 no jornal O Liberal, de Belém, tratando de uma forma
especial de serviço que a Rural e as emissoras regionais de modo geral
prestaram às vésperas do século 21. O título da reportagem foi “Um pouco
da nossa história nas mensagens radiofônicas”. Leia a seguir:
Todos os dias, a cada momento, mensagens como esta estão sendo levadas
aos milhares de pequenos núcleos no coração da Hileia: “Alô, alô
Faustino, no garimpo do Ratão. Bila avisa que recebeu uma carta de Porto
Velho, informando que seu irmão, Carlos Sampaio da Silva, foi
assassinado”.
Ou esta: “Atenção, mensagem para João Picanço, em Januária, e Manoel
Gláucio, em Inanu. Mundinha avisa que a Cleusíbia foi operada ontem às
9h30, na Maternidade Sagrada Família. Passa bem”. Ou esta outra
mensagem: “Pede-se à pessoa que souber do paradeiro de um senhor de
aproximadamente 67 anos, que saiu de casa numa canoa e desapareceu.
Fineza informar no Tapará ao senhor José Alves de Moura, que dará uma
recompensa de mil cruzeiros”.
É assim que se processa a comunicação no interior da Amazônia. É a única
forma possível de comunicação rápida em regiões como a nossa, embora só
tenha uma direção – do emissor ao recebedor da mensagem. Não há
interatividade, ao menos imediata.
Primeiramente foram as estações de Belém e Manaus que realizaram esse
serviço, quase sempre no sentido capital-interior, quando a teia das
relações entre os núcleos urbanos regionais era pouco diversificada.
Numa época em que o telefone era um sonho, quem deixava o interior rumo
às capitais, já levava, pronto no bolso, o recado que mandaria de volta,
avisando os parentes sobre as condições da viagem. Era uma necessidade
para os que ficavam e uma espécie de status ouvir no rádio o próprio
nome e o da cidadezinha distante.
E foi assim, através do rádio, que os parentes e amigos distantes
passaram a ter uma informação rápida sobre o parente internado num
hospital da capital, o filho aprovado nos exames escolares, o dia da
viagem de volta, os negócios feitos ou a solução de um problema junto ao
padrinho político.
A utilização de um meio de massa para a transmissão de mensagens
pessoais só pode ser entendida no contexto de uma região como a
Amazônia, onde alguns sinais de modernização aliam-se às condições mais
primitivas de relacionamento entre as pessoas. Somente a necessidade
pode levar um indivíduo a mandar a um ente querido um recado por meio
público e cujo teor é compartilhado por milhares de ouvintes, relatando,
por exemplo, mazelas familiares, pedindo dinheiro ou informando que não
suporta mais a presença do cobrador à sua porta, com as prestações do
fogão vencidas.
Por exemplo: “Atenção, Raimundo Aparecido, na clareira do Jabuti ou onde
estiver. Sua mãe pede que mande notícias, pois já faz três meses que
você viajou”. “Mensagem para Diquinho Silva, no garimpo Alta Floresta,
sua mulher avisa que não recebeu o ouro que você mandou. Pede que mande
dizer quem trouxe. As crianças estão doentes”. “Atenção, Juca Mendonça,
no garimpo do Patrocínio. Aviso que estou sem dinheiro; mande logo, se
não, vou dar o meu jeito. Assina, Kátia”. Mensagens assim são irradiadas
aos milhares, todos os dias. Característica de um rádio que acompanha
de perto os fluxos migratórios na região, de modo especial na última
década.
Como a resposta é demorada e, muitas vezes, inexistente, o correio do
interior serve também para tirar dúvidas provocadas por boatos:
“Atenção, garimpo do Bom Jardim, mensagem para Zeca Araújo, sua esposa
pede que mande notícias com urgência, pois o compadre Raimundinho chegou
com a notícia de que você tinha sido assassinado”.
As emissoras de Belém, Manaus, Santarém e outras cidades recebem com
frequência cartas de outros Estados, pedindo a localização de um
parente. Cartas do Maranhão, Piauí, Paraná, R. G. do Sul. Pais, esposas,
namoradas querem, ansiosos, saber do paradeiro do ente querido que
desapareceu em busca do Eldorado. Pedem notícias do filho com o qual
tiveram contato quando ele passava por Santarém, onde lhe roubaram os
documentos e o pouco ouro que trazia. Querem saber do parente do qual
ouviram dizer que estava internado com malária no hospital de Itaituba.
Ou procuram saber se, no avião que caiu perto de Maués, notícia que
leram nos jornais, não se encontrava o parente garimpeiro que trabalha
naquelas lonjuras e do qual há mais de seis meses não recebem notícias.
A prestação desse serviço é, algumas vezes, utilizada por indivíduos
que, ao invés de desejarem a transmissão de um simples recado, procuram
camufladamente outro objetivo. Mensagens assim são comuns quando da
descoberta de uma fofoca, ou seja, uma nova área de garimpagem, ou
quando algum baixão está bamburrando. Com mensagens cifradas eles podem
estar entabulando um bom negócio ou tentando desviar o fluxo de
garimpeiros de uma área para outra. Ou podem refletir interesses
conflitantes de grupos interessados nas riquezas da floresta.
Foi o que ocorreu há algum tempo com relação ao garimpo do Paranaitá, na
zona de influência de Alta Floresta, quando pessoas interessadas na
disputa por certa região aurífera utilizaram os serviços de algumas
rádios, transmitindo mensagens truncadas, numa linguagem impossível de
ser detectada como tendenciosa pelos funcionários das emissoras. Há
também a suspeita de que esses programas foram atentamente gravados por
órgãos de segurança do governo militar, à época da guerrilha do Araguaia
e de graves conflitos de terra na região de Marabá, sempre com a ideia
de que, entre uma mensagem sincera e outra, poderiam estar sendo
irradiados recados em código para grupos em luta no interior da mata.
Uma mensagem aparentemente ingênua, dizendo que “Zé da Silva avisa que a
criança está bem, depois da consulta ao médico” poderia muito bem
significar que “o ouro seguiu para São Paulo e eu já falei com o nosso
fornecedor”.
Além de assuntos familiares e de negócios, vão também por esse correio
aberto as mensagens de fé, educação, das atividades de governo:
“Atenção, comunidades interioranas para as visitas de Frei Raimundo;
haverá missas no dia primeiro, em Santa Maria; dia dois, em Açu e dia
três em Porto Franco”. “Atenção, colônia Açaizal do Prata, a professora
Fátima avisa aos interessados que as matrículas serão feitas no dia 24.
Não faltem”. “Mensagem para os colonos da área da Rurópolis Presidente
Médici. O executor do INCRA avisa que, no domingo, o doutor Paulo Iokota
estará aí para a entrega de títulos de terra”. “Atenção, professores da
rede municipal. A prefeitura avisa que os salários de junho já estão
depositados no Banco do Estado”.
Esse meio instantâneo faz também com que pessoas de uma localidade do
interior se comuniquem com outras de outra localidade ribeirinha ou de
terra firme. Para isso, mandam cartas às rádios ou pedem a viajantes que
levem o recado para entregar na estação, na cidade.
É dessa maneira que o rádio está ajudando a documentar este momento
histórico da Amazônia. Uma autêntica crônica diária sobre o modo de
vida, as relações de trabalho, os problemas familiares, enfim, um relato
constante se irradia pelos céus da região, contando em detalhes o que
se passa na alma dessa gente, neste precioso momento em que o século 20
caminha para o seu final (Belém, 12 de julho de 1981).
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