VOCE QUE GOSTA DE SABER DAS COISAS, PRESTE BEM ATENÇÃO NESSA MATERIA DO PROFESSOR DOUTOR EM JORNALISMO E MEU GRANDE AMIGO E EX- DIRETOR MANUEL DUTRA: Bem antes da Rio+20 foi assim. E hoje, como está essa tragédia humana?


Vítimas obrigadas a cavar a própria sepultura, gestantes evisceradas, cabeça humana transportada em caixa de gelo para provar o “serviço” executado - segundo se conta na região -, duelos de morte por motivos banais e, também, a virtual dependência que demonstram muitos trabalhadores, do garimpo, praticamente impossibilitados para outra atividade. Não seria isso tudo, misturado às condições sociais, econômicas e sanitárias as mais escabrosas em que vivem esses indesejáveis da sociedade brasileira, resultado também da intoxicação que lhes afeta o cérebro já cronicamente enfraquecido pela miséria?                                      
                                                                                                   Garimpeiro do Mato Grosso, com a bateia
Muito antes da Rio-92 e da Rio+20 hoje, a imprensa paraense dava destaque às questões ambientais num momento em que ainda não havia o chamado "repórter ambiental", pois éramos apenas repórteres. De modo particular o jornal O Liberal, pela visão de seu dono, Rômulo Maiorana, o pai, incentivava a produção da reportagem, fato que elevou em muito a vendagem do jornal.

Éramos um grupo de jornalistas que viajávamos pelo interior da região, registrando momentos particularmente marcantes, como as grandes queimadas de floresta, o processo de assentamento de colonos trazidos para as margens das rodovias Transamazônica e Santarém-Cuiabá, a briga pela terra, as questões indígenas e a poluição dos rios. Quanto à poluição, eu dediquei páginas e páginas de reportagens dominicais à transformação do Rio Tapajós num esgoto dos garimpos, em quase toda a sua extensão de mais de 1.900 quilômetros.

Não éramos ligados a nenhum movimento ambientalista ou subsidiados por qualquer ong. Fazíamos apenas jornalismo. Foi um momento em que o jornal O Liberal se tornou referência nacional e mesmo internacional nessas questões. De certo modo, nosso trabalho contribuiu em muito para as pautas ambientalistas que viriam a dominar o cenário da Rio-92. As informações sobre questões amazônicas saíam, em grande parte, daqui da própria região e não o inverso, como se observa hoje, quando as pautas ambientais vêm de fora, bem ao estilo da leniência jornalística e do retorno ao viés colonialista segundo o qual quem sabe das coisas daqui são os de lá.

Assim, dois anos antes da Rio-92 produzi a reportagem que segue, publicada em O Liberal há exatos 22 anos. Felizmente, por vias transversas, essa situação mudou bastante, para melhor, não por obra de alguma política pública de combate ao desmanche da Amazônia, mas por causa da queda dos preços do ouro e da retenção de ativos pelo governo Collor. O Tapajós voltou a ter s sua cor natural e o mercúrio passou a ser utilizado na amalgamação do ouro em quantidades menores, fazendo menos estragos. A seguir a reportagem, que reproduzo como história, relato de um momento passado já distinto, mas não tanto, do presente:
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MERCÚRIO MATA ÍNDIOS E GARIMPEIROS
            O que antes era suposição ou resultado de testes incompletos, agora revela-se através de dados científicos, irrefutáveis. Milhares de garimpeiros, índios, comerciantes de ouro ou simples ribeirinhos estão morrendo, ou sobrevivendo com a saúde comprometida, vítimas da intoxicação do mercúrio largamente empregado nos garimpos da Amazônia.

            A fonte da informação parece insuspeita - trata-se dos laboratórios da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Kumamoto, no Japão, onde foram feitos todos os exames que levaram à comprovação do mercúrio como causa da morte ou invalidez de mais de duas mil pessoas contaminadas por despejos industriais na baía de Minamata, no final da década de 50, e cujos efeitos se prolongam até hoje.

            Os testes foram feitos nos cabelos de 39 pessoas de Itaituba (PA) e Boa Vista (RR). Em todas as amostras foram detectadas alterações provocadas pelo metal pesado, sendo que, em 80% dos casos, as alterações estão acima dos parâmetros geralmente aceitos pela Organização Mundial de Saúde. Um garimpeiro do interior de Itaituba, em novembro de 1989, quando a amostra foi colhida, estava sob risco de morte iminente, com 18,8 vezes mais mercúrio no organismo do que o aceito num trabalhador de país desenvolvido onde, com apenas seis partes por milhão, (6 ppm), o trabalhador é afastado para tratamento. O de Itaituba estava com 113,165 ppm. Esse nível está 56,5 vezes maior que a taxa de mercúrio considerada normal nos cabelos que é de 2 ppm.

            Em 1988 técnicos das Universidades Federal do Pará também examinaram amostras de pelos de garimpeiros, revelando índices preocupantes de contaminação mercurial. Mas no Brasil quase sempre os testes empregam a dosagem de mercúrio total. No Japão, a pesquisa foi mais completa, chegando aos percentuais do mercúrio orgânico nos cabelos. A coleta das amostras é fruto do trabalho do documentarista free-lancer Yun Okamura, em reportagem para The Mainichi Newspaper, e da jornalista Chazu Takase, do Assahi Newspaper. Na região, eles foram orientados pelo cardiologista Fernando Branches, de Santarém. O material foi recolhido de pessoas nas pistas do Rato e Fé em Deus, de pacientes do hospital da Fundação Sesp, e de empregados de uma loja de compra de ouro no município de Itaituba, e na Casa do Índio, em Boa Vista.

            Os pacientes internados estavam se tratando de outras doenças, a quase totalidade com malária e hepatite. Como no Brasil a saúde pública ainda está absolutamente alheia aos efeitos desse tipo de degradação ambiental, nenhum dos doentes hospitalizados, e dos quais foram tiradas amostras de pelo, era tido como suspeito de estar intoxicado por mercúrio. Pelo menos no caso de Itaituba, a pesquisa da universidade japonesa atesta antiga suspeita - de que, em variados níveis de gravidade, a contaminação está generalizada entre os trabalhadores, a massa dos peões de grota que não têm recursos para tratar-se.

         É ainda fora de dúvida que muitas mortes estão sendo falsamente atestadas em virtude do desconhecimento dos médicos das entidades públicas e da medicina privada. Falsas malárias, falsas hepatites, “inchaço” sem causas diagnosticadas e muitos outros males podem estar camuflando a real extensão do envenenamento coletivo provocado pela disseminação do metal líquido que há décadas vem sendo despejado pela garimpagem, comprometendo as fontes de vida em toda a Amazônia.
            Defeitos congênitos
            Os parâmetros da Organização Mundial de Saúde indicam que, no cabelo, podem ser considerados aceitáveis os casos até 2 ppm, e o limite de tolerância biológica pode ir até 6 ppm. Os sintomas da variada gama de doenças causadas pelo mercúrio começam a manifestar-se a partir de 20 ppm e, quando a intoxicação chega a 50 ppm, os sintomas já são evidentes e a pessoa está com a saúde comprometida para o resto da vida.

            Na mulher grávida tem sido constatado que, com apenas 10 ppm de mercúrio revelados em exames de pelo, o feto pode ser contaminado de modo irreversível, podendo nascer uma criança com problemas cerebrais e deformações físicas, embora a mãe não sinta os efeitos da intoxicação. No Japão, até hoje, o governo mantém casas especializadas no tratamento de adultos, filhos de mulheres contaminadas pelos peixes capturados na baía de Minamata. Com defeitos congênitos, muitas pessoas dependem de assistência permanente para sobreviver.

            No interior de Itaituba foi examinado um queimador de ouro da pista do Rato. Na área do garimpo Fé em Deus, um queimador, quatro maraqueiros (trabalhador que sustenta a ponta metálica de uma grossa mangueira de sucção da lama) e uma cozinheira. Dos sete analisados, seis estão com níveis de mercúrio acima do normal e um apresentava grau de envenenamento muito acima do limite máximo de tolerância biológica, com 113,165 ppm. No Fé em Deus, o teste foi feito nos cabelos de uma mulher queimadora de ouro. Ela estava com 21,466 ppm, mais de duas vezes além do nível em que a mulher pode gerar filhos defeituosos. As sete pessoas estão expostas ao mercúrio em períodos variando de 4 a 22 anos.

            Numa loja da cidade de Itaituba, os quatro homens analisados têm média de idade de 25 anos. O gerente, o avaliador, o caixa e o queimador estão nessa atividade entre dois e quatro anos. Todos estão contaminados pelo mercúrio acima do limite máximo aceitável (6 ppm) nas tabelas de controle de saúde ocupacional. E já deveriam estar afastados do serviço definitivamente, primeira exigência do tratamento. Os exames foram concluídos na Universidade de Kumamoto em abril e, desde a coleta das amostras até agora não há informação sobre tais pessoas, pois não está havendo acompanhamento de campo nem clínico dos casos estudados.

       No hospital foram retiradas amostras de pelo de pessoas procedentes dos garimpos São Francisco, Tauari, São José, Tocantins, Zé Arara, Mamoal, Penedo, Patrocínio, Bom Jardim e Bacurau. As idades variavam entre 12 e 62 anos e eles estavam em contato com a mineração por períodos variando de 6 meses a 3 anos. Entre os dez pacientes, havia uma menina de 12 anos, com nível mercurial no cabelo de 5,414 ppm. Do total, oito estavam com nível acima de 2 ppm e dois acima de 6 ppm.

       Segundo o médico Fernando Branches, que há mais de quatro anos estuda o diagnóstico e a terapia da intoxicação por metais pesados e que elaborou o roteiro técnico de coleta de amostras para os dois jornalistas japoneses, “o que mais chama a atenção nesses casos encontrados no hospital de Itaituba é o pouco tempo de exposição ao mercúrio disseminado no ambiente dos garimpos e ao vapor da queima”. Para Branches, é preocupante ainda o caso da menina de 12 anos, que deve apenas residir num garimpo, sem atividade direta com o cascalho; e os índices da contaminação encontrados nos dez pacientes - 80% acima do limite aceitável pela ciência médica especializada e 20% ainda mais graves,  superando os limites tolerados pela exigência da saúde ocupacional.
            Mundurukus e ianomâmis
            Na Casa do Índio, em Boa Vista (RR), estavam 18 indivíduos que se recuperavam de malária e outras doenças. Eram pessoas do grupo ianomâmi e de diversas outras nações, procedentes das localidades de Papiú, Mucajaí, Ericó, Iroperep, Mahanu-Papiú, Campo Verde e outros. Todos eles já estiveram ou estão ainda em contato com os garimpos de Roraima, cuja problemática tem sido alvo de protestos internos e externos, e que o atual governo tenta solucionar mandando dinamitar as primeiras pistas para impedir o pouso de aviões que mantêm em atividade a mineração ilegal.

                As amostras foram colhidas de 13 homens e 5 mulheres. Embora com níveis mais baixos que as amostras de garimpeiros e funcionários de compra de ouro, os 18 índios apresentaram a média de 3,661 ppm por pessoa. Cinco estavam  dentro dos padrões aceitáveis, 12 apresentavam alterações além de 2 ppm e uma já preocupa, estando com 7,460 ppm de mercúrio em seu organismo. Embora não tenham sido examinados os índios mundurukus, do Alto Tapajós, município de Itaituba, em viagem feita na semana passada Fernando Branches encontrou entre eles, na aldeia de Sai-Cinza, indivíduos com claros sintomas de intoxicação grave, causada pela poluição física e química que desce dos rios Teles Pires e São Manoel, contaminando particularmente os peixes, alimentação básica de índios e caboclos.

            No momento em que se constata em algumas tribos amazônicas uma ainda tênue retomada de crescimento populacional, a poluição que as afeta torna-se particularmente preocupante. A contaminação causada pelo mais venenoso dos metais pesados impregna toda a natureza  - águas, florestas, peixes, pássaros - entranha-se na cadeia alimentar e transfere-se para o organismo humano. Para sobreviver e voltar a crescer os povos da floresta precisam continuar lá, no ambiente histórico e cultural, o mesmo ambiente que agora o homem branco envenena, como se a dita civilização tivesse propositadamente encontrado uma nova maneira de eliminá-los, insatisfeita, talvez, com os minguados remanescentes da guerra sem trégua que o conquistador empreende contra o índio há 500 anos.

            Para o autor da história de Alice no País das Maravilhas, o “mad hatter” não passava de uma figura folclórica. Era o chapeleiro maluco, que assim ficava porque trabalhava nas fábricas de chapéus de feltro, onde era empregado o nitrato de mercúrio. A velha história pode estar bem atual entre os mineradores brasileiros. Nos garimpos, um certo tipo de delinqüência começa a chamar a atenção de alguns, poucos, observadores. Por exemplo, assassinatos cujos métodos cínicos de violência estarrecem, não poderiam estar associados aos efeitos que o uso abusivo do mercúrio provoca no comportamento?

            Vítimas obrigadas a cavar a própria sepultura, gestantes evisceradas, cabeça humana transportada em caixa de gelo para provar o “serviço” executado - segundo se conta na região -, duelos de morte por motivos banais e, também, a virtual dependência que demonstram muitos trabalhadores, do garimpo, praticamente impossibilitados para outra atividade. Não seria isso tudo, misturado às condições sociais, econômicas e sanitárias as mais escabrosas em que vivem esses indesejáveis da sociedade brasileira, resultado também da intoxicação que lhes afeta o cérebro já cronicamente enfraquecido pela miséria? A história mais antiga e a mais recente da “prata líquida”, que ganhou o nome do deus mitológico, pode não oferecer explicações cabais. Mas bem pode abrir brechas para um estudo sério do que se passa hoje no sertão da Amazônia brasileira.
                                                                                                                        Junho/90

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